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Artigo - Novos precedentes do TJ-SP sobre a renúncia prévia a direitos sucessórios

O ano de 2024 terminou com uma decisão alvissareira para todos os que defendem a possibilidade de renúncia prévia a direitos sucessórios, especialmente quando realizada reciprocamente entre cônjuges e companheiros em pacto antenupcial ou convivencial. Estou entre aqueles que entendem válido e eficaz esse tipo de negócio jurídico, conforme me manifestei aqui em colunas passadas [1].


Pois bem, em outubro de 2024, o Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, nos autos da Apelação Cível nº 1000348-35.2024.8.26.0236, em acórdão relatado pelo eminente corregedor geral Francisco Loureiro, um dos grandes civilistas da magistratura nacional, determinou o registro de pacto um antenupcial, com cláusula de renúncia prévia ao direito concorrencial. Transcrevo a ementa:


“Registro de Imóveis – Escritura pública de pacto antenupcial que fixa o regime da separação convencional de bens – Cláusula que prevê a renúncia recíproca ao direito sucessório em concorrência com herdeiros de primeira classe, conforme previsão do art. 1.829, I, do CC – Desqualificação pelo Oficial e dúvida julgada procedente, sob o argumento de infringência ao art. 426 do CC, que veda contrato cujo objeto seja herança de pessoa viva.

Controvérsia doutrinária acerca da validade da renúncia antecipada ao direito sucessório concorrencial Validade da renúncia defendida por parte da doutrina, que não vislumbra transgressão a nenhum dispositivo legal (arts. 426, 1.784 e 1.804, parágrafo único, todos do CC). Distinção entre pacta corvina e renúncia antecipada à herança, que não tem como objeto disposição sobre o patrimônio de pessoa viva discussão sobre a legalidade da renúncia antecipada de herdeiro necessário à legítima, antes da abertura da sucessão, que somente seria possível de lege ferenda.


Cônjuges devidamente advertidos, por ocasião da lavratura da escritura, a respeito da controvérsia do tema e possibilidade de invalidação futura da cláusula Registro no Livro 03 do RI obstado em razão de uma única cláusula, impedindo que o pacto como um todo surta efeitos perante terceiros Validade da renúncia antecipada será avaliada na esfera jurisdicional se a sociedade e o vínculo conjugal terminarem pela morte de um dos cônjuges e se houver concorrência na sucessão Registro do pacto essencial para que o regime da separação convencional de bens, em sua totalidade, tenha eficácia em face de terceiros Registro do pacto não significa adesão à legalidade da cláusula de renúncia antecipada, aberta a via jurisdicional para discussão dos interessados, após a abertura da sucessão Distinção entre a amplitude da qualificação do registrador para o registro constitutivo de direitos reais e para o registro de pacto antenupcial, para fins de eficácia perante terceiros.

Apelação provida para determinar o registro do pacto antenupcial.”


O caso analisado centrava-se na negativa registro, no Livro nº 3 Registro Auxiliar, de escritura pública de Pacto Antenupcial formalizado pelos apelantes e que foi obstado por suposta afronta ao artigo 426 do Código Civil, em razão da existência de cláusula prevendo a renúncia prévia, pelos cônjuges, do direito de concorrer com os descendentes (CC, artigo1.829, I) quando aberta a sucessão de qualquer um deles.


A posição trilhada pelo CSM, ao determinar o registro do título, ainda que tenha reconhecido a controvérsia que grassa em torno do tema, reforça a ideia que vimos sustentando há bastante tempo, no que tange à validade desse tipo de pactuação.


Aliás, do acórdão consta expressamente que a renúncia prévia não caracteriza o chamado contrato sobre herança de pessoa viva, de que trata o artigo 426. Confira-se:


“No caso concreto não há propriamente contrato sobre herança de pessoa viva. A vedação legal a tal pacto (pacta corvina) repousa em duas razões. Primeiro, se houver participação no negócio do titular do patrimônio, que ocasionaria violação ao direito potestativo e permanente de revogação de testamento até o momento da morte. Segundo, o estímulo imoral do beneficiário de desejar a morte do disponente. Na renúncia não se dispõe e nem se cria qualquer ônus sobre a herança. Apenas o potencial herdeiro abdica de tal qualidade antes da abertura da sucessão. O único óbice diz respeito ao próprio herdeiro, e não ao titular do patrimônio, qual seja, o de abdicar de avaliar quanto ao melhor momento da renúncia. Ao renunciar à herança, o renunciante abre mão de qualquer benefício que poderia ter com o falecimento do autor da herança. Ao contrário da pacta corvina, a renúncia à herança não deve despertar qualquer desejo de morte do autor da herança quando, do contrário, estaria em acordo com um projeto de vida e de planejamento familiar.”


Acrescento que o próprio TJ-SP, em sede jurisdicional, no julgamento do Agravo de Instrumento n. 2113183-80.2021.8.26.0000, já havia se posicionado, anteriormente, no sentido de que, em havendo escritura de renúncia de herança pelo companheiro, a manifestação de repúdio deve ser respeitada, salvo se houver declaração de nulidade realizada em ação própria. Confira-se ementa e trecho do voto do relator:


“Ementa: Agravo de instrumento. Inventário. Decisão agravada que, entre outras deliberações, determinou o recolhimento das custas processuais e do ITCMD, no prazo de quinze dias, com vistas a dar celeridade ao processo, bem como deferiu a habilitação da viúva do “de cujus” como herdeira, para concorrer com os descendentes do falecido. Insurgência. Parcial acolhimento. (…) Precedentes jurisprudenciais desta E. 3ª Câmara de Direito Privado. Inclusão da ex-companheira como herdeira que se mostrou incorreta, diante da cláusula a respeito em escritura pública de união estável. Questão que foi remetida às vias próprias e, portanto, depende dessa análise, para ser desconsiderado o então voluntariamente estabelecido. Recurso provido.[2]


Voto: No que se refere à insurgência quanto à habilitação da companheira do de cujus como herdeira, deve ser acolhida. Da escritura de convenção de união estável se verifica a renúncia à herança seria exercida pelo companheiro sobrevivente, acaso o falecido deixasse descendentes, o que é a hipótese.


O Juízo de origem enunciou que “argumentos que questionam a validade da escritura pública de união estável (ou a união estável em si) devem ser debatidos em autos próprios, pois o inventário é procedimento de jurisdição voluntária e nele não se debate matéria de alta indagação e/ou alto teor probatório”.


Dessa forma, uma vez que o questionamento da validade da estipulação antecedentemente realizada pelo ora inventariado e a ora Agravada deva ser realizado por meio de ação própria, em consequência, até que se obtenha esse pronunciamento, há que prevalecer o que foi livremente por eles convencionado, pois do contrário se estaria desde já a decidir pela inaplicabilidade do então ajustado, a prescindir da decisão em via própria, o que não se justifica, pois a estipulação foi livremente estipulada e deve ser observada, até que desconstituída.”


Tendência global

A renúncia aos direitos sucessórios, através de pacto antenupcial ou convivencial, tem sido amplamente veiculada em razão do princípio da intervenção mínima do Estado nas relações familiares.


A autonomia dos particulares em tais situações se dá tanto em relação à autonomia existencial quanto à autonomia patrimonial, sendo que esta última se estende ao direito das sucessões, uma vez que o nosso ordenamento jurídico dispõe que pode qualquer herdeiro renunciar à herança ou ao legado, não havendo, da mesma forma, restrição a que se renuncie a qualquer outro direito sucessório, como ocorre com a renúncia à legítima ou ao direito de concorrer com os descendentes.


Não há no direito interno qualquer proibição literal à renúncia a direitos sucessórios diversos da herança antes de aberta a sucessão, salvo se contrariar a ordem pública ou se for em prejuízo de terceiro, o que não ocorre na específica hipótese do direito à concorrência sucessória do cônjuge ou companheiro, que não se confunde com a hipótese de ser chamado sozinho à sucessão, como herdeiro único e universal. Assim, validamente renunciável é o direito concorrencial na hipótese em que o cônjuge é chamado a suceder em conjunto com descendentes ou ascendentes.


Demais disto, admitir a renúncia prévia à herança ou ao direito concorrencial, em pacto antenupcial ou em contrato de convivência, concretiza o direito fundamental de herança do próprio herdeiro renunciante, ao passo que, extrair do artigo 426 norma restritiva da renúncia, infringe diretamente esse direito fundamental.


Em suma, as últimas decisões do TJ-SP refletem uma tendência mundial de se flexibilizar a proibição de pactos sobre herança futura, até porque a renúncia prévia da herança, ou de outros direitos sucessórios, é admitida em grande parte dos povos civilizados, ora textualmente, ora a título de exceção de tolerância, tal como acontece na Bélgica, Polônia, República Checa, Alemanha, França e Espanha etc. Na Alemanha, para que se fique com um único exemplo, e cujo Código Civil (BGB) é tido como paradigma para grande parte da civilística brasileira, é possível a celebração de contrato de renúncia prévia à sucessão entre os potenciais herdeiros e o autor (§ 2.346 BGB), por escritura pública. Pode-se também renunciar exclusivamente à legítima (§2.346, 2, BGB), por escritura pública.


De qualquer sorte, o Anteprojeto de Reforma do Código Civil, apresentado ao Senado Federal em meados de 2024, deve espancar, em definitivo, qualquer controvérsia sobre esse tema, passando a regular, como exceções à proibição genérica do caput do art. 426, os diversos pactos sucessórios admitidos no Direito brasileiro [3].

 

 

[1] Cf. Da renuncia prévia ao direito concorrencial por cônjuges e companheiros. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-abr-07/processo-familiar-renuncia-previa-direito-concorrencial-conjuge-companheiro/


[2] TJ-SP. Agravo de Instrumento nº 2113183-80.2021.8.26.0000, Relator: João Pazine Neto, 3ª Câmara de Direito Privado, Data de Julgamento: 27/07/2021, Data de Publicação: 28/07/2021


[3] Ao ensejo de disciplinar algumas modalidades de negócios jurídicos sucessórios, o Anteprojeto de Reforma do Código Civil propõe o acréscimo de cinco novos parágrafos ao artigo 426, nos termos seguintes: Art. 426. (…) § 1º Não são considerados contratos tendo por objeto herança de pessoa viva, os negócios: I – firmados, em conjunto, entre herdeiros necessários, descendentes, que disponham diretivas sobre colação de bens, excesso inoficioso, partilhas de participações societárias, mesmo estando ainda vivo o ascendente comum;II – que permitam aos nubentes ou conviventes, por pacto antenupcial ou convivencial, renunciar à condição de herdeiro.§ 2º Os nubentes podem, por meio de pacto antenupcial ou por escritura pública pós-nupcial, e os conviventes, por meio de escritura pública de união estável, renunciar reciprocamente à condição de herdeiro do outro cônjuge ou convivente.§ 3º A renúncia pode ser condicionada, ainda, à sobrevivência ou não de parentes sucessíveis de qualquer classe, bem como de outras pessoas, nos termos do art. 1.829 deste Código, não sendo necessário que a condição seja recíproca.§ 4º A renúncia não implica perda do direito real de habitação previsto o no art. 1.831 deste Código, salvo expressa previsão dos cônjuges ou conviventes.§ 5º São nulas quaisquer outras disposições contratuais sucessórias que não as previstas neste código, sejam unilaterais, bilaterais ou plurilaterais.§ 6º A renúncia será ineficaz se, no momento da morte do cônjuge ou convivente, o falecido não deixar parentes sucessíveis, segundo a ordem de vocação hereditária.



é doutor em Direito Civil (USP), mestre em Direito das Relações Sociais (PUC-SP), membro da Comissão Especial do Senado para Reforma do Código Civil (relator da Subcomissão de Sucessões), membro da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC), diretor do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP), professor e advogado.

 

Fonte: Conjur

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